janeiro 06, 2006

Felicidade à força e por modelo

Uma tendência que parece persistir em certos meios é obrigar toda a gente a ser feliz, quer as pessoas queiram, quer não. Esta felicidade identifica-se naturalmente com o seguimento de todas as regras de quem impõe o modelo. Tradicionalmente foram usados todos os métodos para conduzir as pessoas à felicidade, incluindo a tortura e a morte. Hoje não fica bem andar atrás de adultos a obrigá-los a ser felizes. Então toda esta necessidade de fazer os outros à nossa medida dirigiu-se para um novo alvo: as crianças.
Não se pode obrigar os outros adultos a ser iguais a nós mas pelo menos pode exigir-se que as crianças sejam iguais a nós. E numa época em que se começa a levar a sério os direitos da criança, é fácil dizer que apenas o nosso modelo faz as crianças felizes. Claro que pelo caminho esquece-se o detalhe de que dentro do modelo tradicional existe imensa infelicidade e que fora deste modelo existe muita felicidade. E esquece-se que, ressalvando os direitos fundamentais da criança, quer a criança quer os pais têm o direito a que esta seja educada como os pais entendem. A alternativa a esta situação seria uma intervenção externa de tal ordem na vida das famílias que tornaria a sociedade insuportável. Estas mesmas pessoas, se fossem confrontadas com uma intervenção externa na sua família ou com uma avaliação objectiva da sua capacidade de fazerem felizes os seus filhos entrariam em choque e clamariam à terra e aos céus e viriam todos os poderes religiosos em sua defesa. Lá no fundo estão apenas plenamente convencidas da sua superioridade sobre os outros.

Isto vem a propósito de uma notícia de um Encontro Mundial das Famílias para a qual a MC chamou a atenção no Jardim de Luz. Note-se o requinte:
"Existe uma onda de acomodação colectiva, que pensa, de maneira completamente errada, que não há diferenças entre ter um filho no âmbito de uma família ou fora do matrimónio. Pensa-se que bastam amor e cuidados para as crianças se desenvolverem bem", alerta, em entrevista à Rádio Vaticano. Para esta responsável "isso não é verdade".
Gostaria de ver os estudos que comprovam que amor e cuidados não são suficientes para fazer uma criança feliz mas que com um matrimónio dos pais a criança passa logo a ser feliz. Resta ainda saber qual a definição de família que se tem aqui subjacente. Mas a verdadeira motivação acaba por vir ao de cima e não tem nada a ver com a felicidade das crianças mas sim com um modelo de sociedade:
"os filhos que não tiveram uma família exemplar consideram-na algo dispensável. Existem repercussões a longo prazo, que são dramáticas", refere, apontando para a deterioração do tecido social, iniciada pela não valorização de uma instituição como o matrimónio.
As crianças são um meio para defender uma instituição e não o contrário.

Note-se que a tendência para controlar as crianças dos outros aparece de outros modos: quando a propósito da procriação assistida se começam a exigir condições para o nascimento de uma criança que ninguém se lembraria de impor no caso de um nascimento normal. Porque é que neste caso se pode exigir que haja um casal, pai e mãe? Ou se é coerente e se passa a exigir um casal para que haja qualquer gravidez (punindo quem gere filhos fora de uma relação estável) ou então dever-se-ia reflectir sobre as reais motivações por detrás de tais exigências. É muito fácil para quem está de fora, a viver o seu celibato ou a sua família tradicional, dar sentenças e impor exigências aos outros. Apenas não creio que tenham o direito de impor essas exigências pela via legal a menos que se sujeitem a um escrutínio análogo sobre as suas condições para gerarem as suas famílias. Se não aceitam esse escrutínio (que me parece errado), deveriam deixar-se de andar a impor os seus modelos aos outros, apenas porque se julgam donos da chave da felicidade.

12 Comments:

Blogger maria said...

CA
completaste muito bem a discussão. Eu não me surpreendo muito com estas receitas de felicidade, porque as conheço bem de mais. Mas fico abismada com o primarismo das reflexões.
Há coisas que nos estão no instinto ou lá no que é. Conheço e tenho tido contacto com miúdos que estão afastados dos pais e o instinto deles de família, de laços, subrepõe-se a tudo, até às violências de que foram alvo ou presenciaram. Nesses miúdos também vejo um desejo, um sonho enorme de vir um dia a constituir a sua própria família, onde essas coisas não aconteçam. Infelizmente, muitas vezes o círculo mantém-se mas não é porque eles não quisessem que fosse diferente.

O único objectivo, (Deus que me perdoe)desses encontros/reflexões é mandarem mais uma dúzia de anátemas sobre quem não se encaixa nos moldes que criam.

6/1/06 17:25  
Blogger timshel said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

7/1/06 07:35  
Blogger timshel said...

julgo que o mal de muita gente que diz mal da família tradicional é que viu montes de "tradicionalistas" destilarem ódio e discriminaçao a tudo quanto esteja ligeiramente fora da maior ortodoxia nas relações familiares

e então a revolta parece e é justa; mas é preciso não substituir a falta de bom-senso de um lado pela falta de bom-senso no sentido contrário, o mundo não é a preto e branco (como por vezes pareces fazer crer CA) e a intuição e o bom-senso são importantes para encontrar equilíbrios que visem a felicidade

podes-te insurgir contra a felicidade enquanto objectivo e aí paro a discussao pois é essa a minha base de partida

mas fazer tábua rasa do facto que me parece absolutamente incontestavel que existe uma maior correlação estatística entre famílias desestruturadas e infelicidade parece-me um absurdo

é óbvio que existem casos de felicidade em famílias desestruturadas mas não podemos tomar a nuvem por Juno; existe de facto uma correlação estatistica maior entre familias desestruturadas e infelicidade do que entre familias estruturadas e infelicidade (só um cego - e, como disse no blogue da MC, não há pior cego do que aquele que não quer ver - é que não quer ver isso)

pode-se perguntar o que é para mim uma familia desestruturada? É tao simplesmente uma família em que os progenitores tendem a pensar mais cada um em si próprio que nos outros membros da família. O que tem isto a ver com a família tradicional? Tendencialmente, sublinho tendencialmente (repito que o mundo não é a preto e branco), a família tradicional tem mais condições subjectivas e objectivas para pensar sobretudo na felicidade dos filhos.

Não me pronuncio quanto à parte final do post sobre a realidade pessoal dos defensores de uma ou outra teoria. Só te digo que se conhecesses a minha realidade pessoal talvez não tivesses tantas certezas. O que não impede que tente ver objectivamente qual o melhor caminho para a felicidade das crianças.

7/1/06 07:40  
Blogger CA said...

Timshell

Todos desejamos que as crianças sejam felizes. A questão é saber se isso é algo que se imponha de fora. O que me choca nesta questão do matrimónio é que só se tem o que o Timshell diz: correlações. Ora isto nem sequer significa causalidade. E se pensarmos um pouco veremos que não são as instituições a garantir "que os progenitores tendem a pensar mais cada um em si próprio que nos outros membros da família." E nem sequer acho que seja isto que dá a felicidade a uma criança.

Sendo assim parece-me pouco adequado andarmos a acenar com bandeiras deste género. Haverá certamente correlações positivas entre a felicidade (medida como, já agora?) das crianças e muitos outros factores na vida. Além disso, aposto que os factores com os quais se encontra correlação dependerá certamente do modo como medirmos a felicidade. E acrescente-se: a felicidade mede-se durante a educação da criança ou ao longo de toda a vida? É que uma criança preparada para a vida pode ser menos feliz até à idade adulta mas mais feliz perante o mundo. Uma criança pode ser muito feliz na infância e juventude e ser infeliz na idade adulta.

Mais grave do que andar a acenar bandeiras é a sugestão difusa e levada ao concreto no caso da procriação assistida: deve-se impedir de ter filhos quem não tiver uma família tradicional. Partiu-se de uma vaga correlação e, com este tipo de mentalidade, já se está a entrar num terreno em que não se tem o direito de entrar. A prova de que não se tem o direito de entrar no terreno de decidir se os outros podem ter filhos ou não é que estas "famílias exemplares" nunca tolerariam um exame objectivo por um psicólogo ou por um assistente social como condição prévia a poderem iniciar uma gravidez. Garanto-lhe que muitas têm filhos sem terem condições para os fazer felizes. O que digo é que começamos com uma preocupação com a felicidade das crianças, misturamos a defesa da instituição abstracta e, se formos coerentes até ao fim (já escrevi antes que estes moralismos normalmente são delimitados à procriação assistida; a ética da felicidade controlada é boa, mas só para os outros), acabaremos num estado que exige que as pessoas obtenham uma licença de paternidade antes de poderem iniciar uma gravidez, punindo que não o fizer. A imposição externa de limites à paternidade tem já uma história apreciável mas, do meu ponto de vista, nada desejável: filho único, esterilizações forçadas, etc.

7/1/06 16:48  
Blogger timshel said...

"O que digo é que começamos com uma preocupação com a felicidade das crianças, misturamos a defesa da instituição abstracta e, se formos coerentes até ao fim..."

CA

Mais uma vez repito que o campo da existência humana (e o que com ela se relaciona - ciências humanas, ética etc.) não deve ser analisado monocromaticamente, como grandes blocos lógicos, sólidos e coerentes, mas de um modo tópico, na busca do equilíbrio e do bom senso entre valores que por vezes são conflituantes (certos cristãos "tradicionalistas" e outros crentes de base fundamentalista também têm tendência a raciocinar em termos de maciços edifícios lógicos, de grande solidez e coerência, mas ao contrário...)

existiu contudo algo que disseste en passant que me assustou particularmente: "...a garantir "que os progenitores tendem a pensar mais cada um em si próprio que nos outros membros da família." E nem sequer acho que seja isto que dá a felicidade a uma criança."

Mas sobre isso não encontro de momento comentários apropriados.

7/1/06 17:40  
Blogger CA said...

Timshell

Onde está "não são as instituições a garantir "que(...)" queria dizer "não são as instituições a evitar "que(...)"

Quanto ao monocromatismo, penso que fica claro que não vejo as coisas a duas cores apenas. Agora a coerência do pensamento não tem que ver com isso e parece-me imprescindível. Abordagens tópicas não vejo onde nos podem levar. Valeria mais assumir então uma postura "relativista". Agora impor à força aos outros uma ética em nome de uns princípios que não aceito para mim não me parece compatível com nada. Os valores que conflituam na procriação assistida são os mesmos que conflituam na procriação natural.

7/1/06 18:18  
Blogger timshel said...

"Os valores que conflituam na procriação assistida são os mesmos que conflituam na procriação natural."

Não. Precisamente. Não me parecem que sejam. Já por mais de uma vez tive ocasião de referir que o equilíbrio, o bom senso e o sentido da proporcionalidade nos devem conduzir no campo dos valores éticos a um equilíbrio - impossível de dizer à partida em concreto qual será - entre os valores do amor, do respeito pelas leis naturais e da luta pela vida. Tentar absolutizar qualquer um destes valores em abstracto e tentar construir um edifício ideológico ou ético maciço e totalmente coerente em termos lógicos só pode conduzir à mais rematada tolice neo-dogmática.

"impor à força aos outros uma ética em nome de uns princípios que não aceito para mim não me parece compatível com nada"

Mas quem é que quer impor pela força alguma coisa? Ainda não vi padres de pistola em punho (pelo menos actualmente :))a obrigar alguém a o que quer que seja?

Agora existem decisões que a igreja toma. Obviamente. Ela não se pode estar nas tintas para cima de assuntos importantes. Quem estiver de acordo está. Quem não estiver de acordo pode sempre dialogar sobre a justiça ou bondade dessa decisão da igreja. mas que a igreja tem que tomar decisões sobre questões da actualidade (e deve-as tomar), disso tenho poucas dúvidas.

8/1/06 09:30  
Blogger CA said...

Timshell

O impor à força tem a ver com a tentativa de passar certas regras para as leis. Depois das regras estarem nas leis existem pessoas que as impõem de pistola em punho.

Quanto ao conflito de valores, deveria dizer então quais são os valores que conflituam num caso e noutro. Não se deve confundir coerência com absolutização de um valor. Agora se em situações análogas não se aplicam princípios análogos não percebo como pode haver uma ética racional. Individualmente cada um de nós pode pensar o que quiser, mas pelo menos as leis deviam ser coerentes.

Quanto à hierarquia, o Timshell acerta na mouche: "a igreja tem que tomar decisões sobre questões da actualidade". Isto é o que a hierarquia pensa (mal, na minha opinião) e por isso se põe a falar de forma precipitada e muito pouco reflectida.

8/1/06 11:28  
Blogger Confessionário said...

Amigo, o texto é longo. Consegui ter copragem para o ler. Como diria o mais sensato (ou o saboir faire), não discordo nem concordo. E podia fiocar por aqui. Mas a verdade é que , na minha opinião, não se devem impor modelos a quem quer que seja. NMo entanto, podem propor-se. Aliás, foi o que Jesus fez. propôs, deixando ao livre arbítrio, o seu modelo de felicidade e de amor. Para mim é claro que a felcidida se encontra neste modelo. Costumo dizer que pode faltar saúde, dinheiro, casa, ou o que quer que seja, que se existir amor, conseguimos existir...
Ora, assim sendo, porque não propor o amor como a força ou motor da felicidade?!
Agora já sei que vais dizer que é muito relativo, ou são relativas as diversas formas de amar!
A mim só me interessa referir o Amor que conduz à felicidade. Tb há muitas formas de amor que, se calhar não conduzem... porque~não se ama apenas porque está instituído que em determinados espaços, instituições, grupos ou pessoas se encontra amor...

8/1/06 17:28  
Blogger Confessionário said...

Desculpa os erritos. estou sem luz... hi hi. É para compensar o outro dia lá no Confessionário!

8/1/06 17:29  
Blogger maria said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

10/1/06 15:04  
Blogger CA said...

Caro Confessionário

"Ora, assim sendo, porque não propor o amor como a força ou motor da felicidade?!"

Nisto estou 100% de acordo!

"Agora já sei que vais dizer que é muito relativo, ou são relativas as diversas formas de amar! A mim só me interessa referir o Amor que conduz à felicidade."

Se não conduz à felicidade não me parece que seja Amor. Há diversas formas de amar porque o Amor não é algo abstracto, é algo que se encarna e se vive no concreto. E o concreto das pessoas varia muito. Mas não creio que o essencial do Amor varie muito. E acredito que existe um referencial absoluto do Amor que é o Amor de Deus visível em Jesus e que temos connosco o Espírito que nos ajuda a viver o Amor no concreto.

Agora quanto aos modelos, o Espírito de Deus sopra nos modelos que quer. Há modelos objectivamente maus (quando há falta de respeito de uma pessoa por outra, por exemplo) mas há outros que, embora não sendo os tradicionais, revelam a presença do Amor de Deus, que dá frutos concretos. Ora a atitude dos cristãos não deve ser a de discutir se o modelo dos outros está ou não de acordo com o seu catálogo tradicional mas sim observar se as características do Amor estão presentes. E resistir ao Amor porque ele é vivido em modelos não tradicionais parece-me simplesmente um pecado contra o Amor.

14/1/06 10:44  

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