O tempo do corpo
O corpo é a estrela de uma sociedade ultraviolenta, supertecnificada e hipersexual.Estas generalizações parecem-me sempre arriscadas. Em particular devo dizer que estou em desacordo com dois dos adjectivos que aplica à sociedade. Mas vejamos:
"ultraviolenta" - a nossa sociedade deve ser das menos violentas da história; há uns tempos chamaram-me a atenção para um facto simples: o número de homicídios por milhar de habitantes hoje em Portugal é bastante menor do que há 100 anos; mesmo a nível global, existem focos de grande violência que são intensamente noticiados mas parece-me que a média de violência por milhão de habitantes dev ser hoje muito melhor do que em qualquer época anterior;
"supertecnificada" - neste estou de acordo: o nosso dia-a-dia hoje envolve mais aparatos técnicos do que em qualquer outra época; apenas não me parece que isso seja mau: não consigo deixar de me maravilhar com tudo o que a humanidade tem feito;
"hipersexual" - porque é que a sociedade hoje é mais sexual que em outras épocas? Não me parece que o seja. Fala-se e escreve-se muito sobre sexo, mas será que as pessoas vivem mais a sua sexualidade que noutras épocas? No meio de um dia-a-dia de trabalho, agitação e stress, não se falará mais do que se vive realmente? Talvez por isso mesmo?
Finalmente devo dizer que desconfio sempre que se começa a pintar a época actual como o limite de alguma degradação. Isso é normalmente usado para depois vir propor alguma redenção feita à medida. Mas normalmente perde-se a capacidade de ver o muito que o mundo tem melhorado. Para um cristão a visão catastrofista pode ser mesmo uma forma de negar a acção de Deus na História.
19 Comments:
"...desconfio sempre que se começa a pintar a época actual como o limite de alguma degradação".
Eu também. Näo pretendia fazê-lo. Limitei-me a apontar o que considero uma característica do nosso tempo, aplicável às sociedades ocidentais. Claro que as generalizaçöes säo sempre perigosas e injustas. Mas também säo formas de perceber a complexidade.
Manuel
Mas não respondes às minha objecções quanto ao "ultraviolenta" e "hipersexual".
A sociedade ultraviolenta e hipersexual é a sociedade que os media revelam. Não corresponde à realidade, mas como, na sociedade mediática, o real é o que se vê, tais características "tornam-se" realidade.
Porquê tanta violência? Porquê tanto sexo? Porque vendem. São apenas items de consumo, bens consumíveis...
"A sociedade ultraviolenta e hipersexual é a sociedade que os media revelam."
Hoje eu limitaria esta afirmação aos media de grande divulgação. Há muitos media diferentes.
"Não corresponde à realidade, mas como, na sociedade mediática, o real é o que se vê, tais características "tornam-se" realidade."
Terá que ser assim? Se nos apercebemos que a realidade não são os media de grande divulgação, não seremos capazes de procurar influências alternativas e criar relações que não se limitem a reproduzir o que "vende"?
Caro CA
A classificaçäo de "Ultraviolenta" näo se refere(embora näo a rejeite) à violência física. Há uma violência entranhada no nosso sistema social, feita de exploraçäo, injustiça social, competiçäo profissional, etc...etc... É violenta na medida em que "obriga" o sujeito a despersonalizar-se, dando-lhe ainda por cima a sensaçäo de ser mais independente do que nunca.
Chamo-lhe "Hipersexual" porque me parece haver uma erotizaçäo brutal da vida social, da cultura, da arte... Näo digo que haja mais sexo. Embora também ache que sim. Mas näo é a quantidade que me interesssa quando refiro esta característica. Falo de uma sensibilidade, de uma "obsessäo" culturalhedonista A publicidade, a literatura, o cinema, a comunicaçäo social...Tudo favorece uma exuberância da sexualidade que aparece, em minha opiniäo, hipervalorizada.
Repara que näo estou a fazer qualquer juízo moral. Apenas me parece uma característica definitória do nosso tempo.
Também eu fiz um post a cascar no Manuel. :)
Caro CA
Procurar influências alternativas? Está difícil. Uma possibilidade é a busca da arte, mas também esta se rende cada vez mais à lógica do consumo. A grande hípótese é quebrar a cadeia: viver o silêncio e o despojamento. Mas é uma cura mais dolorosa do que um programa de desintoxicação de drogas químicas...
Manuel
Quanto ao "ultraviolenta", se usas a palavra por comparação com o ideal, estarei de acordo contigo: sonho com uma sociedade muito menos violenta do que a actual. Mas se comparares com as diferentes sociedades ao longo da história, mesmo considerando a "violência entranhada", continuo a achar a nossa sociedade actual das menos violentas. Noutras sociedades nem sequer havia competição porque as injustiças estavam traçadas ao nascer.
Quanto ao "hipersexual", parece-me que estás a comparar a situação actual com um passado do ocidente cristão em que a sexualidade era reprimida (como diz o ON nos comentários do Prozacland) mas isso não é um termo de comparação saudável. Se compararmos a nossa sociedade com outras sociedades em que houve abundância, não penso que a nossa seja mais "sexual". Vê por exemplo a série "Roma" na RTP1 às segundas.
Caro(a) anonymous
Quando escolho um filme, programa de televisão ou revista, rejeito quase sistematicamente a violência, mesmo que disfarçada de arte ou usada para "apimentar" a arte. Há muitos trabalhos de muitas pessoas orientados para ajudar os outros a ser felizes. Penso que as alternativas estão muitas vezes mesmo à nossa porta, apenas há que procurá-las intencionalmente.
Já agora, uma questão, para mim pertinente: quando rejeitamos a violência, quando a reprimimos, não estaremos a cometer o mesmo erro do passado, quando rejeitávamos o instinto sexual, quando o reprimíamos?...
O comentário acima veio mesmo a propósito:)
(o spam, que eventualmente será apagado eplo CA)
CA,
estava mesmo a pensar na série Roma.
Talvez faça uma exposição de artefactos:)
talvez o problema não esteja tanto em saber se a nossa sociedade é mais ou menos "ultraviolenta, supertecnificada e hipersexual" do que no passado mas saber se ela não é mais "ultraviolenta, supertecnificada e hipersexual" do que deveria ser.
Talvez o primeiro dos erros esteja na adjectivação da sociedade!... Há tantas "sociedades" dentro da Sociedade! Porque não simplesmente tentar viver nelas o que nelas há de Deus, sem tentar reduzi-las à catalogação?
Excelente análise,ca.
Caro Timshel,
discutir "como é que as coisas deveriam ser" não é mais do que a suprema confissão da nossa impotência para interagir com a sociedade.
Anonymous
A comparação com a violência é interessante, mas penso que há diferenças.
A violência não é tão essencial para a sobrevivência como a reprodução; parece-me que os instintos ligados à sexualidade são mais fortes e prementes que os ligados à violência e agressividade; mesmo hoje, não reprimimos completamente a violência: apenas a desviamos de modo a torná-la menos física e/ou menos perigosa. Se formos pessoas empenhadas no respeito pelos outros, podemos canalizar a violência para uma competição ou actividade sem agredirmos os outros; se não tivermos respeito pelos outros podemos usar a violência a nível não físico: competição feroz nos negócios, emprego, escola, etc.
O grande problema de um certo modo de viver o cristianismo foi não só reprimir a sexualidade potencialmente mais problemática (relações sexuais entre não casados, por exemplo) como reprimir todas as formas de viver a sexualidade (desde reprimir a simples erecção no homem até censurar o prazer numa relação matrimonial).
Uma repressão semelhante no domínio da violência consideraria como pecado potencialmente grave um simples alterar do tom de voz.
Globalmente temos em nós "forças" que dificilmente podemos abafar: sexualidade, fome, agressividade, etc. Podemos tentar orientá-las de forma racional e positiva ou podemos deixar-nos dominar por elas. Quando tentamos abafar frontalmente estas forças os resultados podem ser bem piores do que aqueles que pretendemos inicialmente prevenir.
Caro On
"discutir "como é que as coisas deveriam ser" não é mais do que a suprema confissão da nossa impotência para interagir com a sociedade"
não por acaso defendo que Deus é (quase) omnimpotente
não discutir "como é que as coisas deveriam ser" é que me parece uma perspectiva de total aceitação (próxima aliás das visões naturalísticas neoliberais nos termos das quais tudo é biológico, sociedade inclusive e, por consequência, tudo deve ser aceite cegamente sem qualquer tipo de normatividade)
o "dever ser" é aquilo que separa o homem dos animais
Quase?
T., Ainda voltamos a falar sobre o dever ser...
Entretanto voltei a reflectir sobre o tempo do corpo. Começo a duvidar que vivamos nele.
O catastrofismo não é um bom caminho. Desde que me conheço como gente que ouço discursos negativistas sobre a sociedade. E a verdade é que vivemos muito melhor que há 10 anos atrás. Quantas ditaduras e guerras desapareceram nos últimos anos? , só pra dar um exemplo. Acontece que o que acontece hoje em algum lugar do mundo sabe-se rápidamente em todo o lado. E parece muuuiiiiito. Outra escala. Outras dimensões. A aldeia global!
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