janeiro 29, 2006

Os perigos do eros

A encíclica "Deus caritas est" parece-me globalmente positiva e tem algumas passagens de que gostei especialmente. Tenciono ir relatando por aqui alguns desses aspectos. Contudo a primeira parte parece-me menos conseguida por se envolver numa discussão cujo objectivo não chego a compreender. Para ajudar a animar a discussão, começo por colocar aqui as minhas dúvidas.
Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade mas de certa forma impõe-se ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros.
É esta a definição do Papa? O amor entre homossexuais também terá uma componente de eros? O eros em si é algo mau? Por um lado "necessita de purificação" e parece ser sujeito de "subversão devastadora". Por outro lado a fonte do mal parece ser a "falsa divinização do eros", remetendo a responsabilidade para o homem.
o amor - o eros - pode amadurecer até à sua verdadeira grandeza
o eros quer-nos elevar «em êxtase» para o Divino, conduzir-nos para além de nós próprios mas por isso mesmo requer um caminho de ascese, renúncias, purificações e saneamentos.
Mas se o eros nos quer elevar para o divino, quem é que precisa de purificação, o eros ou o homem que pode usar bem ou mal o eros? Mais à frente fala-se do "eros de Deus pelo homem".
Dois dados resultam claramente desta rápida visão sobre a concepção do eros na história e na actualidade.
Mas onde é que, na encíclica, se falou do eros na actualidade até esta passagem?
entre o amor e o Divino existe qualquer relação
o caminho para tal meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto
Estou 100% de acordo mas resumir esta questão ao eros parece-me muito empobrecedor. O instinto não pode ser deixado livre em todos os aspectos da vida: sexualidade, vida económica, uso da violência, etc.
Faz parte da evolução do amor para níveis mais altos, para as suas íntimas purificações, que ele procure agora o carácter definitivo, e isto num duplo sentido: no sentido da exclusividade - «apenas esta única pessoa» - e no sentido de ser «para sempre».
Quanto ao "para sempre" estou de acordo, mas nem o agape nem o eros procuram a exclusividade. Parece-me que o que fundamenta a exclusividade é a limitação da natureza humana encarnada e a protecção ao amor conjugal.
Na realidade, eros e agape - amor ascendente e amor descendente - nunca se deixam separar completamente um do outro.
Embora o eros seja inicialmente sobretudo ambicioso, ascendente - fascinação pela grande promessa de felicidade - depois, à medida que se aproxima do outro, far-se-á cada vez menos perguntas sobre si próprio, procurará sempre mais a felicidade do outro, preocupar-se-á cada vez mais dele, doar-se-á e desejará « existir para » o outro. Assim se insere nele o momento da agape; caso contrário, o eros decai e perde mesmo a sua própria natureza.
Mas então é a natureza do eros que muda? Isto é, o eros é uma parte do homem, sujeita a evolução, ou é uma componente do amor que o homem pode adoptar mais ou menos?
Por outro lado, o homem também não pode viver exclusivamente no amor oblativo, descendente. Não pode limitar-se sempre a dar, deve também receber.
Mas há contradição em viver um amor oblativo e receber amor? O receber tem alguma coisa a ver com o eros?

Finalmente volto a sublinhar: os gregos são chamados, bem como Virgílio. É-nos dito que na Bíblia o "eros" só aparece duas vezes. Para quê toda esta teoria do eros? Para responder a Nietzsche (único autor citado dos últimos três séculos)? Ou para reflectir sobre a sexualidade humana? Para isso há muito trabalho nos últimos duzentos anos que é muito mais esclarecedor. Realmente os assuntos da sexualidade deveriam ter como base mais as ciências humanas do que a religião e parece que não se quer admitir isso. O "eros" tem os seus perigos.

14 Comments:

Blogger timshel said...

ca

eu vou tentar sintetizar:

o eros (como todos os instintos e como todas as leis da natureza) tem uma componente positiva (a que conduz ao outro) e uma componente negativa (a que conduz ao eu)

sempre que o eros serve apenas para o eu é tendencialmente errado

mas o outro não é apenas aquele que vive aqui e agora mas também aquele que virá no futuro

porque o amor deve reflectir um equilíbrio adequado entre a disponibilidade para o outro aqui e agora e a disponibilidade para o outro que virá no futuro (o respeito pelas leis naturais e pela luta pela vida) não basta que o eros se centre no outro (e não apenas no eu) mas também sobre o outro no futuro

29/1/06 08:06  
Blogger CA said...

Timshell

Se o eros é um instinto natural deveria ser abordado através das ciências da natureza e do homem, nomeadamente as que estudam a sexualidade humana. A abordagem através de autores da antiguidade e de duas ou três passagens bíblicas parece-me não contribuir para esclarecer grande coisa.

A divisão do eros em duas componentes não me parece estar na encíclica. Também não vejo porque é que uma componente dirigida ao eu deveria ser negativa: afinal o mandamento do amor é amar o próximo como a mim e não esquecendo-me de mim.

O respeito pelo outro no futuro parece-me relativo: devo deixar de dar aos pobres porque tenho receio que falte para os meus netos e bisnetos no futuro?

A que se refere quando fala de leis naturais? Às leis da natureza ou ao chamado direito natural? O que é o respeito "pela luta pela vida"?

Creio que ficou claro que nem o próprio Papa parece saber muito bem o que quer com toda esta parte da encíclica e que deixa muitas perguntas por responder. As respostas do Timshell não só não vêm ao encontro das minhas dúvidas como saem já do que está na própria encíclica.

29/1/06 11:23  
Blogger timshel said...

não

parce-me que está lá exactamente aquilo que digo

29/1/06 13:48  
Blogger CA said...

"parce-me que está lá exactamente aquilo que digo"

Timshell

Talvez me pudesse explicar onde e responder também às dúvidas do post.

29/1/06 14:14  
Blogger timshel said...

"O respeito pelo outro no futuro parece-me relativo: devo deixar de dar aos pobres porque tenho receio que falte para os meus netos e bisnetos no futuro?"

ca

este é mais um exemplo de distorsão daquilo que escrevo

quem é que te disse que o respeito pelo outro no futuro diz apenas respeito "aos meus netos e bisnetos"?

lamento mas assim torna-se difícil dialogar

29/1/06 18:52  
Blogger CA said...

"lamento mas assim torna-se difícil dialogar"

Timshell

É realmente difícil dialogar se aproveita algum aspecto em que eu não terei entendido o seu pensamento para não responder a nenhuma pergunta sobre o que estava antes em causa.

Quanto a distorcer, a minha interpretação está com um ponto de interrogação e o Timshell teve obviamente a hipótese de explicar que não era aquilo que pensava, pelo que não me parece correcto apresentar-se como vítima de distorção.

29/1/06 19:11  
Blogger timshel said...

ca

o respeito pelas leis naturais é o respeito pelas leis da natureza; o direito natural é o direito de origem divina, a palavra de Jesus Cristo

não absolutizo o respeito pelas leis da natureza, bem pelo contrário

o que digo é que o amor cristão deve ser entendido como a procura de um equilíbrio feito de bom-senso e de sentido da proporcionalidade quando existem valores conflituantes em jogo na procura do bem de diversos Outros (e o respeito pelas leis da natureza é a procura do bem de Outros que ainda hão-de vir).

30/1/06 07:13  
Blogger Vítor Mácula said...

Alô, caros.

Apenas uma nota acerca da noção de eros em jogo, que não é “apenas” a freudiana ou a da hodierna linguagem quotidiana.
O que caracteriza o eros “clássico” não é a sua restrição à sexualidade, mas sim o ser movido e determinado pelas características do algo amado (beleza, inteligência, intensidade, equilíbrio, whathever…); o que caracteriza a agape neotestamentária é ser um amor que carrega o seu sentido doando-a à coisa amada, ou revelando-a nele.
Ambos podem ocorrer na sexualidade, e em muitas outras “conecções”.

O que não significa, evidentemente, que a referida encíclica não tenha explícita e inexplicitamente uma "tese" acerca da sexualidade...

E por ora, abraços!

30/1/06 11:35  
Blogger CA said...

Vítor

Obrigado pelo contributo. Mas assim fica ainda mais clara a confusão do eros nesta encíclica. Então o amor determinado pelas características do amado precisa de purificação? E só está ligado ao instinto? E se a divisão for feita como dizes porque é que um é ascendente e outro descendente?

Um abraço.

30/1/06 22:40  
Blogger Vítor Mácula said...

Caro CA.

Bem, à papo seco que isto é um tema…

Sim, precisa de renovação, o eros. Porque as características do amado são no fundo as afecções do amante… a abertura que o amor que detém em si o seu sentido e beleza doa, abre-nos à presença cega da alteridade. Mas não se trata de uma anulação do eros, assim como este não está evidentemente apenas ligado ao instinto mas sim à nossa natureza e cultura espontâneas. Daí a ascendência do eros (ele é uma possibilidade da natureza humana) e a descendência da ágape (ela é um dom de Deus, inacessível e totalmente estranho à natureza humana).

Não quero dizer que eu pense isto totalmente – por isso isto é para mim um tema… - mas que é esse o sentido de tais noções.

No entanto, suspeito que penso muito isto e assim ;)

Um abraço.

31/1/06 14:27  
Blogger CA said...

Vítor

Tanto quanto percebo, o homem tem na sua natureza a capacidade de amar como Deus ama. É óbvio que tudo de bom no homem vem de Deus. O que no homem não vem de Deus é o pecado. Assim, caracterizar a ágape como "inacessível e totalmente estranho à natureza humana" é para mim difícil de compreender. A menos que a ágape seja o Espírito de Deus e o eros seja como tudo no homem: chamado a crescer e a ordenar-se para o amor. Mas nesse caso, volto ao início: para quê este discurso eros/ágape na encíclica? O que se tira daí que não se tirasse melhor de outra apresentação? Porque não deixar as especificidades da nossa biologia, da nossa cultura, etc., às ciências humanas, ocupando-se a teologia de questionar se ordenamos o que temos para o amor a Deus e ao próximo?

31/1/06 17:28  
Blogger Vítor Mácula said...

Alô CA.

Eh pá "confesso" que já nem estava a pensar na encíclica...

Mas sim, a agape é o Espírito de Deus, claro.

Voltando à encíclica (mais ou menos, querem ver que ainda tenho que a ir reler :) a dicotomia eros / agape já é tradicional, e teve, entre outros que eu saiba e não saiba com certeza, o seu momento de "protestação" em "As obras do amor" de Kierkegaard, e mais recentemente com os trabalhos do pastor Anders Nygren. Isto tão só para dizer que está na ordem do discurso teológico, digamos assim, o que tem a sua importância nas encíclicas.

Bem, e eu penso que a teologia e pastorícia tem que ter em conta as ciências humanas... Eu até acho que lá para o Vaticano muitas vezes é isso que "falta", e não uma demissão dessa relação - e digo bem, relação, e nunca substituição.
Mas penso que é o que queres também exprimir, no sentido de caber à teologia a questão da "ordenação para o amor a Deus e ao próximo".

Mas não percebo muito bem o espanto da dicotomia. Tem que ter-se sempre em conta a dialéctica humano/divino - perdão e pecado, natureza e graça, finito e infinito, desejo e amor... Que não são evidentemente dicotomias de mútua exclusividade mas, antes pelo contrário, constituem a dinâmica da fé.

Enfim, eu nestas coisas sou muito tradicionalista ;)

Abraço!

31/1/06 18:34  
Blogger CA said...

"Tem que ter-se sempre em conta a dialéctica humano/divino - perdão e pecado, natureza e graça, finito e infinito, desejo e amor..."

Claro. Mas a minha dúvida é se a associação do eros ao pecado que me parece pairar sobre a encíclica não tem ainda a intenção de associar a sexualidade ao pecado. Se calhar estou a ver fantasmas onde eles não existem. Felizmente a encíclica é suficientemente vaga para cada um ler como quiser. Até já vi escrito que esta parte era uma continuação da teologia do corpo de João Paulo II, embora eu não consiga perceber bem como.

Um abraço.

31/1/06 19:37  
Anonymous Anónimo said...

Desculpem.
Eu vou ser mais simples, penso...
Foi a primeira vez que num documento - ao mais alto nível - se fez o elogio do eros.
E isto na Igreja , parece-me ser muito significativo.
É porque
1. o tempo - em termos de mudança- na igreja não me parece nada ser o mesmo, o do espaço da ciência ( a título de exemplo)
2. o tempo, ainda foi mais longo pelo facto de "alguém" ter retardado sucessivamente a saída da encíclica
3. o tempo foi muito curto quando "alguém" resolveu fazer um "resumozinho"- a encíclica está escrita numa linguagem muito mais acessível do que a que foram escritas por João Paulo II- e apresenta apenas 44 páginas. Estão a ver que se não se fizesse o dito cujo "resumozinho" "ninguém ia conseguir ler"...
4. Eu , no meu blog, mantenho um link deste mesmo documento, para que se possa comparar com outras práticas (e teorias) de grupos que se integraram na Igreja, mas não são a Igreja.

Por fim quero dizer que gostei muito de ler outros pontos de vista, sobre estas questões.
Se nos visitarem, também gostarei de ver postados "outros lados", desde que igualmente honestos intelectualmente, como vi neste blog.
Um Abraço

Fátima Filipe

15/6/06 07:11  

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